terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Porta-Retratos


(escrito para o e-book Os Tempos que o Tempo Levou e posteriormente publicado na antologia Todo o Tempo do Mundo, da Editora Rosa Rosé)

Para Seu Genésio, o tempo passava impreterivelmente. Afinal, ele era um ser humano como qualquer outro. E a cada alvorada, mais nítida ficava a forma como esse tal de tempo agia. O andar de Seu Genésio começava a ficar vagaroso e a bengala tornou-lhe um artefato indispensável. Suas mãos tremulavam cada vez mais, suavemente, como se agitavam aquelas cortinas de seda em dia de ventania. Seus cabelos começaram a embranquecer e a cair, abrindo uma simpática careca em sua cabeça. E as rugas brotavam aos montes na face descorada. Aquela era a forma que o tempo escolhera para avisá-lo de que seus intermináveis caminhos, durante um quase centenário, finalmente o levavam para algum lugar.

Admito que, mesmo não tendo um coração, eu sentia muita pena de Seu Genésio. E meu ódio por esse tal de tempo crescia. O tempo havia lhe tirado a agilidade de subir em árvores; levou embora aquela memória certeira, que outrora entregava em primeira mão a lista dos números telefônicos de todos os seus amigos e parentes. O tempo lhe roubara até Dona Maricota, aquela moça simpática que, segundo ele, “partiu para o infinito”. Às vezes, eu pegava Seu Genésio suspirando na janela. Provavelmente, ele estava tentando olhar para esse lugar onde Dona Maricota estava, mas até a boa visão o tempo lhe arrancara, e ele era obrigado a usar o dia todo um par de óculos redondos que viviam escorregando pelo seu nariz.  A cada dia que passava, mais triste ficavam os olhares que ele me lançava. E eu bem sabia que o culpado disso tudo era o tempo.

Eu exercia uma função muito importante na vida dele. Ele me escolhera, dentre tantos outros, para tornar imortal o que eles chamam de passado. Era meu trabalho fazer com que ele nunca se esquecesse dos sóis que iluminaram sua infância. Era eu que devia fazer com que ele sempre se lembrasse de como já fora uma pessoa feliz, e não aquela “criatura amargurada”, como ele próprio ousava se chamar.

Todo dia, Seu Genésio sentava na minha frente e contava suas histórias, aquelas que o tempo lhe dera em troca de tudo que lhe havia extirpado. E eu sempre via no fundo de seus olhos aquelas lágrimas puras, como gotas do mais etéreo cristal, que refletiam as infinitas escolhas, alegrias e perdas de toda uma vida. E depois transbordavam de suas pupilas e percorriam sua face enrugada lentamente. Uma de cada vez. Eu tinha vontade de devolver para ele as risadas da infância, o aroma convidativo da comida da sua mãe, os beijos de Dona Maricota com gosto de morango, o prazer de ter em mãos o primeiro salário, que ganhara honestamente aos quinze anos lavando o carro do vizinho… Mas eu não conseguia repor toda a felicidade que faltava no seu coração e isso dilacerava emocionalmente minha moldura. Eu não conseguia replantar em seu rosto a vivacidade daquele extinto sorriso jovial. Eu só podia expor melancolicamente todas aquelas lembranças e condená-lo àquela tristeza cotidiana.

Minha rotina era presenciar todo dia o maior sofrimento dos homens – a incapacidade de voltar no tempo. Eu assistia Seu Genésio chorar em frente à lareira porque queria reviver os abraços da primeira namorada, a felicidade que sentiu quando o mar tocou seus pés, o medo que gelava o sangue quando a diretora da escola aparecia, e os sustos que tomava com Dona Maria, a vizinha que tinha fama de bruxa. Cabia a mim me culpar por estar aprisionando tudo aquilo e todo dia apenas poder banhar seu coração com aquilo chamado saudade, substância abstrata e irônica - corrói como ácido e é contemplado como dádiva. Eu sofria tanto quanto ele, mas eu não tinha escolha. Era essa minha sina.

Uma noite, Seu Genésio fechou a porta do quarto e nunca mais abriu. A movimentação de pessoas desconhecidas na casa, no dia seguinte, me causou um certo incômodo, afinal, eu estava habituado àquela tranquilidade incessante de Seu Genésio. Mas dentre os rumores que passaram de boca em boca naquela manhã, acabei ouvindo que Seu Genésio desistiu de sofrer pelo passado e decidiu encontrá-lo no futuro. Eu não entendi como isso era possível, mas no fundo eu sentia que ele estava feliz. Na verdade, eu acho que ele conseguiu encontrar naquele quarto uma fuga para os dias de seu passado, onde poderia protagonizar de novo e de novo todos aqueles relatos da adolescência. Acho que Seu Genésio encontrou uma espécie de porta secreta que o levara para os tais “dias de outrora”.

Nunca mais o vi. Fui escolhido para guardar as alegrias passadas de outras pessoas. Um casal que quase nunca olha para mim. Às vezes penso em Seu Genésio e sinto um aperto na minha moldura. Lembro das noites frias em que ele tomava café me apreciando com aquele olhar carinhoso e tristonho. Hoje, os cupins já começam a me corroer. Isso significa que eu me tornei outra vítima do tempo. E ainda me sinto triste por Seu Genésio nunca ter se despedido. Acho que é isso que se chama saudade. No fundo, eu sei como ele se sentia.
Victor Tanaka

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A Fuga da Borboleta




                                                       
A iluminação no corredor era rústica e precária, no entanto, o que me tomava atenção era a borboleta presa à saída de ar próxima de onde estava. Suas cores iam do azul turquesa a vermelho-vinho, nunca tinha visto tamanha beleza. Ela movimentava suas asas com extrema rapidez, ansiava por uma fuga que parecia não existir, talvez a mesma que eu buscava. Entretanto, meus olhos não se desprendiam dos seus movimentos, mesmo repetidos, era a única coisa que merecia um olhar naquele antro.
            O som de um grito me desprendeu por alguns instantes dos meus devaneios. Eram femininos e estavam carregados de alguma coisa que não conseguia definir, possivelmente espanto ou quem sabe dor... Não sabia. Depois de alguns minutos eles se dissiparam, ouvi apenas algumas passadas e o som de rodas de um carrinho passando ao meu lado, dando de ombros voltei a minha atenção a borboleta, que ainda tentava desprender suas asinhas da saída de ar.
            A persistência era algo claro à pequena, sinceramente a invejava, queria possuir essa qualidade na minha personalidade, se possuísse eu poderia estar lá fora –, correndo, indo a festas ou namorando. Qualquer coisa seria aceitável. Mas eu estava ali, preso a um corredor, sem forças nem para andar, os gemidos que às vezes soltava vinham de algum lugar que eu não conseguia definir, mas ninguém se importava.
            A maca a qual estava deitado, próximo à saída de emergência, estava próxima a muitas outras macas. E era aquela borboleta persistente que me desprendia da loucura que me cercava. Os gemidos às vezes se uniam num único som que caminhava por todo o corredor. Alguns homens passavam ao nosso lado, mas não notavam nossa presença e quando por sorte nos viam trocavam o saco de soro, que já estava vazio por outro, não tinham tempo para as nossas dores e lamúrias, estavam fazendo o seu trabalho.
            Minha respiração estava acelerada e sentia o suor frio descer em linhas finas pela testa, tentei chamar alguém, mas claro que fora em vão, eles estavam muito ocupados colocando soros em outras pessoas. Quando voltei a prestar atenção na borboleta vi que faltava pouco para ela conseguir fugir. Eu queria tanto ser ela. O aperto no meu peito retornou, minhas pálpebras tremiam, a última coisa que eu notei foi à asinha da borboleta se desprendendo da saída de ar, alçando voo rumo à janela a minha frente.
           




quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

A Garota dos Pés de Vidro





Livro: A Garota dos Pés de Vidro.
Autor: Ali Shaw.
Páginas: 287.
Editora: Leya.
Sinopse:
Você acreditaria que há uma criatura que transforma tudo o que olha em branco puro? Que há corpos de vidro afundados na água do pântano? E vacas do tamanho de insetos, com asas de borboleta? Então ainda não pode enfrentar o que está acontecendo com você. Talvez ainda não tenha percebido, ou ache que é apenas uma farpa no dedo do pé, mas a verdade é que você está, de fato, se transformando em vidro, lentamente. E embora, nesse ritmo, talvez pudesse seguir para sempre, tornando a transformação derradeira tão vaga como a morte, nunca se sabe quando seu corpo e sua razão se cansarão da batalha, e você terá de sucumbir instantaneamente à mais fantástica das cristalizações. É hora de acreditar no impossível. E, antes de mais nada, acreditar em si. Porque, se não é mais capaz de surpreender-se e maravilhar-se com os mistérios dessa vida, talvez seu coração já tenha endurecido.



Pensei um pouco se falaria ou não sobre este livro, pois foi um livro que me fez ter sentimentos ambíguos. Ao mesmo tempo em que ele encanta com um cenário muito bem arquitetado e sombrio, nele há fios soltos que fazem com que você pare e agarre os seus os próprios cabelos, em frenesi.

O livro A Garota dos pés de Vidro conta a história de Midas Crook, um garoto solitário e anti-social, gosta do silêncio e do que ele o propicia, um personagem misterioso, apaixonado por fotografia e cheio de interrogações, que fazem com que nos prendemos a ele logo nas primeiras páginas;  e de Ida Mclaird, uma garota que era aventureira e cheia de luz, e que no momento em que seus pés começam a se transformar em vidro, sua vida se torna fria e preta e branca.

Os dois se conhecem e começam a formar um vínculo quando ela vai para a ilha em que Midas vive, atrás de Henry Fuwa, um homem que talvez tenha as respostas sobre a misteriosa doença que Ida enfrenta.

Os cenários são monocromáticos, as descrições das ilhas são perfeitas, o ponto negativo é que passando da metade do livro começa a se tornar repetitivas as descrições, tornando-se desnecessárias.

Sem dar spoilers, digo que este livro engana muito com uma capa bonita e uma sinopse fantástica e um tanto confusa. Pois costumamos dizer que os livros de fantasia, é a forma que temos de falar dos problemas de forma indireta, de fazermos uma crítica a algo que se fosse um livro sem nenhum elemento fantástico não atrairia tantos leitores e adeptos, mas este livro - a estreia de um autor britânico - ele sim se encaixa nesse contexto, a meu ver as pontas soltas que ficaram foi a forma que o autor encontrou de mostrar o que ele queria. Nele vemos uma metáfora sobre a vida, o tempo... e as escolhas.  Acredito que o universo fantástico que ele criou é apenas um plano de fundo para as analogias que ele coloca, fazendo-nos refletir.

Portanto, guardem um tempo, e leiam este livro. Pois apesar dele não ter uma leitura rápida e possuir pontas soltas, o cenário e os sentimentos que o livro exprime fazem com que valha pena a leitura.






quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Noite Estrelada em Esperas



Ele era o homem mais rico do mundo. Cada detalhe dentro de sua mansão custava a maior quantia de dinheiro possível. Seus móveis eram banhados a ouro puro. Cada peça de roupa que usava era importada e costurada nos mais finos tecidos. Ele tinha tudo o que queria. Bastava um estalo de dedos e seus mais profundos desejos materiais se tornavam realidade. E mesmo assim, Anelídeo não era feliz. De jeito nenhum. Por isso, vivia com uma feição de descontentamento no rosto, o que amedrontava cada um de seus criados.
            Mas o que poderia querer um homem tão rico para completar o quebra-cabeça de sua felicidade? Ele só precisava que o travesseiro ao lado do seu ficasse ocupado. Mas não por uma ou duas noites, como costumava acontecer. Ele queria que aquele travesseiro ficasse ocupado para sempre, sem que ele precisasse se preocupar se o travesseiro continuaria ocupado caso ele perdesse todo seu dinheiro.
            Sua mais confiável criada, Else, há anos procurava a moça ideal para seu patrão, mas todas as mulheres que encontravam só queriam seu dinheiro. E encontrar uma moça que se apaixonasse por Anelídeo era uma missão impossível, pois nenhuma mulher conseguia suportá-lo por mais de duas horas. Desde criança sendo considerado um chato. Desde criança, incompreendido. Por isso, cresceu como um adulto trilionário, sozinho e eternamente frustrado.
            Anelídeo adorava se mudar. E se mudava de cidade constantemente, levando todos os seus incontáveis bens materiais e Else, que nunca o deixava. Em cada nova cidade que chegavam, Else automaticamente convocava todas as moças belas e solteiras, sem o consentimento de seu patrão, e as examinava de cima a baixo e as entrevistava exaustivamente. Mas todas as suas investidas eram frustradas.
            E a cada dia que passava e a cada nova cidade em que desembarcavam, Anelídeo tornava-se mais e mais insuportável. Seus criados viviam se demitindo por não aguentarem mais. Exceto Else, que por algum motivo, prometera à moribunda mãe de Anelídeo que nunca ia abandoná-lo.
            Eis que Anelídeo e seus empregados chegavam à cidade de Esperas, conhecida na região por ser muito bonita e cujos habitantes eram apaixonados por astronomia. Todos os habitantes eram adoráveis e bem vestidos. Else percebeu isso enquanto passeava encantada pela avenida principal da cidade, onde não havia nenhum carro, e parou em uma praça para admirar aquele desfile de gente elegante naquela rua.
            - Perdida? – perguntou um velho de aspecto agradável, sentado em um banco próximo a Else.
            - Não, obrigada. – e riu. – Só estou observando a rua.
            - Mas é nova na cidade.
            - Como sabe?
            - Eu nunca a vi perambulando por essas ruas. Além disso, todos os turistas ficam surpresos com a beleza daqui. Quem é morador dessa cidadezinha, já se acostumou com tanta perfeição, e não fica com essa expressão boboca que a senhora pendura em sua fae agora. – deu uma risadinha.
            Bom, todos os habitantes eram bem-vestidos e simpáticos. Só faltava encontrar a moça perfeita para seu patrão.
            - Há dois quarteirões daqui vive Silvério, o homem mais sábio do mundo. Há quatro quarteirões há o nosso instituto de astronomia. Sabia que semana passada eles descobriram a existência de uma estrela que cabe na palma da mão? Por isso ela não é nem visível com telescópios.
            - Que intrigante.
            - E há cinco quarteirões vive a moça mais linda do mundo.
            - Conte-me mais sobre essa moça. – interessou-se Else.
            - Essa é a pergunta mais fácil que poderia me fazer. – sorriu o homem. – Anfisbena é professora da única escola da cidade, portanto, é extremamente bonita e inteligente.
            Aquele seria o seu alvo. O coração de Anfisbena.
            E lá iam Else e Anelídeo atrás do endereço dado pelo velho. Quando encontraram a rua certa e, logo após, a casa de Anfisbena, Anelídeo desceu de seu carrão importado e tocou a campainha. A porta abriu e uma moça de beleza surreal apareceu. Ela era tão bela, mas tão bela, mas tão bela, que no primeiro momento, Anelídeo entrou em transe e se esqueceu de tudo. Um delicioso cheiro invadiu suas narinas, cheiro de vamos-ser-felizes, cheiro de bolo, de rosas, de tempo passando e noites adentro. Cheiro de café e jantar, cheiro de praia e de mar, cheiro de dia e luar, cheiro de uma vida para dois. E viu-se rodeado por cenas do futuro que ele queria com aquela mulher formosa ao seu lado.
            - Boa tarde, o que deseja? – ela perguntou.
            - Meu nome é Anelídeo. E eu desejo o seu coração.
            - Mas nem nos conhecemos.
            - Mas eu já estou apaixonado. – ele jogou-se aos seus pés, clamando por qualquer ação amorosa da moça mais linda que já havia visto.
            - Desculpa, mas eu não quero assumir compromissos. – lamentou-se a moça. – Quero ter um relacionamento com um homem que um dia eu realmente ame, e eu ainda não o encontrei.
            - Case-se comigo e eu prometo que eu serei esse homem. Eu sou o homem mais rico do mundo. Veja meu carro e minhas roupas! Eu prometo que lhe darei a vida que todas as mulheres querem.
            Então, a mulher lhe lançou um desafio para se livrar daquele maluco.
            - Aceito seu pedido de casamento se… você me der um presente.
            - Qualquer coisa que pedir, lhe darei.
            - Eu quero que você me dê aquilo que mais ninguém consegue ter, aquilo que só um homem trilionário como você pudesse conquistar.
            E fechou a porta sem dizer mais nada.
            Anelídeo passou a noite toda pensando, revirando as prateleiras de sua mente, espremendo sua massa cinzenta atrás da resposta.
            - Isso é impossível, Else. Não há nada que só eu consiga conquistar.
            O pobre homem caminhou até à janela e abriu o vidro. A brisa da noite lhe tocou o pescoço, lhe acariciou o rosto, lhe bagunçou os cabelos e clareou a mente. Olhando aquele céu estrelado, teve a ideia mais absurda de todas.
            - Else, venha aqui! Rápido!
            Eae foi correndo e parou ao seu lado, olhando pela janela.
            - Acho que encontrei o presente perfeito.
            Ela entendeu imediatamente.
            - Mas como conseguirá conquistar, seu Anelídeo?
            - Não há nada que meu dinheiro não consiga. – respondeu de supetão.
            E na madrugada seguinte, adentrando aquele matagal, iam Anelídeo, confiante, e Anfisbena, amedrontada, porém curiosa. Aquela floresta que contornava a lateral da cidade seria o melhor lugar para a entrega daquele presente. Era uma região perigosa, ele bem sabia, por isso carregava um punhal no bolso do terno. Ao chegarem em uma parte bem isolada da floresta, onde não corresse o risco de ninguém os encontraram, pararam de andar e ficaram um de frente para o outro.
            - Por que tivemos que vir até aqui?
            - Não podemos chamar a atenção das pessoas. O que tenho pra lhe dar, na verdade, eu tirei do mundo para dar especificamente a você.
            Ela ficou ainda mais curiosa e inconscientemente animada.
            - Isso é errado. Não posso ficar com algo que não me pertence.
            - Pertence sim.
            - Com que direito posso me apossar desse presente, se pertence ao mundo? – ela perguntou.
            - Com o direito que eu usei todo o meu dinheiro para comprá-lo para você. E agora é só seu!
            Anelídeo entregou-lhe uma caixinha. Ela pegou com muito cuidado, com os olhos fixos, corroída pela curiosidade.
            - Pode abrir. – ele disse.
            Com muito cuidado, ela obedeceu. Abriu a caixa de supetão e uma luminosidade incandescente saiu da caixinha. Uma luminosidade tão forte e tão poderosa, que cegou a moça no mesmo segundo.
            - O que é isso? O que está acontecendo? Não estou vendo nada. – disse a moça, com medo.
            Ao ver o que lhe tinha acontecido, Anelídeo fechou os olhos, com medo de também ficar cego. Ouvindo os gritos horrorizados da moça, tateou rapidamente à procura da caixinha e com muita dificuldade a fechou, trancando lá dentro a misteriosa luz assassina. Abriu os olhos e lá estava Anfisbena, ajoelhada no chão, chorando incontrolavelmente, com medo de nunca mais encontrar a luz do dia.
            - O que você fez comigo? – perguntou a moça, entre soluços de desespero e agonia. – O que é isso que tem dentro da caixa?
            Mas ele não soube responder. E não disse nada. Apenas observava tortuosamente aquela moça de beleza brilhante se rastejando no chão de seu infortúnio.
            - Cadê você? – ela gritava. – Cadê?
            - Eu estou aqui. – ele respondeu e, desesperado, tirou do bolso de seu terno o punhal e disse: - Me desculpa, Anfisbena. Me desculpa mesmo, eu não sabia… Então, para compensar o mal que lhe causei…
            Ele enfiou o punhal no próprio peito e abriu um buraco em formato de círculo. Um buraco grande o bastante para que sua mão pudesse passar, arrancar seu coração de dentro do seu corpo e tirá-lo para fora.
            - Aqui está o meu coração…
            Ele caiu de joelhos e, conseqüentemente, morreu deitado, com a mão esticada entregando seu coração para Anfisbena, mas ela não o pegou. E sem enxergar, nunca mais voltou a encontrar a civilização, até que tropeçou em algumas pedras e caiu em um rio que cortava aquela floresta. E a caixinha foi levada pela chuva para nunca mais.
            No dia seguinte à tragédia, o jornal local da cidade de Esperas publicou na primeira página aquela declaração que os astrônomos do instituto de pesquisas da cidade, tresloucados, fizeram à imprensa naquela manhã: Estrela recém-descoberta foi roubada do céu de Esperas.
Victor Tanaka

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Se Minhas Flores Falassem ou A Flor Encantada Colhida Especialmente Debaixo do Ipê Jasmim do Precipício do Leste


           
 Histórias de amor acontecem qualquer dia, qualquer tempo, com qualquer um. Menos com Romeu, que não amava. Amava sua mãe, mas era um amor diferente. Ele queria aquele amor que um outro Romeu conquistou naquela história que já foi adaptada para o cinema e para o teatro incontáveis vezes.
            Mas Romeu não amava.
            Por uma reviravolta do destino, enquanto passeava por uma calçada qualquer em um dia aparentemente comum, uma senhora rechonchuda voltando da feira foi atropelada por um caminhoneiro que dormiu ao volante. A velha foi arremessada para o outro lado da rua. E foi um eterno furdúncio ao meio-dia. Um eterno furdúncio que possibilitou o começo de uma eterna história, quando aqueles dois olhares se encontraram, como diamantes perdidos em uma selva de pedra. e pareciam feitos um para o outro. Ambos se esqueceram da senhora atropelada e sorriram.
            Seu nome era Julieta. Naquela tarde, Romeu e Julieta conversaram sobre tudo, e embora fosse a primeira vez que conversavam, Romeu tinha a impressão de que já sabia tudo sobre ela, mas que por algum motivo, havia esquecido. Ela tinha cheiro de infância.
            Essa não era a única sensação estranha que sentia perto de Julieta. A partir daquela tarde, após trocarem endereços e números de telefones e nomes e finais de livros, Romeu chegou em casa um tanto quanto amuado, o que despertou o interesse geral de seus familiares que nunca o viram tão silencioso à mesa.
            - O que houve, Romeu? – perguntavam.
            E ele simplesmente respondia:
            - Não sei. Só quero ficar em silêncio.
            Olhou para o lado, onde uma cadeira vazia se prostrava e sua mente recriou a imagem de Julieta, erguendo um copo de suco de laranja enquanto sorria para ele. Ao sentar-se à televisão para assistir Casablanca, sentiu um profundo aperto no peito quando aquele casal, na última cena de filme, deu seu último beijo apaixonado. Suas mãos se fecharam contra a almofada. E enquanto tentava dormir, contando carneirinhos, acabou contando Julietas. Não tinha outra, pensou. Sua noite teria sido muito mais bonita se Julieta estivesse ali.
            No outro dia, tomou com desgosto seu café da manhã encarando a parede vazia. E com o passar do tempo, todos os seus cafés das manhãs tornaram-se desgostosos conforme a saudade que nutria por Julieta aumentava descompassadamente. Anos se passaram e eles nunca mais se viram. Então Romeu entrou em depressão, foi ao cemitério à meia-noite e se jogou em uma vala escura onde nunca mais foi encontrado, deixando no mundo apenas seus bens materiais e uma apaixonada Julieta, que passara setenta anos esperando uma ligação.
            Romeu olhou para o relógio, parou de fantasias e foi para o trabalho. Pensando em Julieta. E trabalhou. Pensando em Julieta. E chegou em casa. Pensando em Julieta. E olhou para o telefone. E o telefone o olhou, sem olhos. E ambos pensaram a mesma coisa: Julieta. Discou os oito dígitos e aquela voz doce lhe atendeu.
            Durante um mês Romeu e Julieta encontraram-se diariamente. E conversavam e riam e ele não queria estar em mais nenhum lugar do mundo em que ela não estivesse. Qual é o nome disso?
            - É amor! – riu sua irmã.
            - Isso é paranóia!
            - Você está amando!
            - Eu não posso estar amando! Eu estou nutrindo um desejo quase sanguinário de vê-la todos os dias, a todo o momento, e toda noite eu sonho com ela!
            - Acredite… Você está amando!
            Era impossível fugir da verdade. No fundo, Romeu sabia que estava amando Julieta e era com ela que queria passar o resto de sua eternidade. Mas tinha medo.
            - Medo do quê? – perguntou sua irmã.
            - E se não for recíproco? E se não der certo? E se nosso amor não durar para sempre? Eu nunca tive um amor, mas vejo todo mundo se lamentando com relacionamentos falhos, e eu não quero isso para mim.
            - Até que para um primeiro amor você está bem covarde…
            - Eu não sou covarde! Eu só sou cauteloso.
            - É covarde! Romeu… É melhor aceitar uma queda do que nunca chegar às alturas.
            E degustando aquelas palavras, Romeu foi dormir determinado a saber se Julieta sentia por ele o tanto quanto sentia por ela.
            Naquela tarde invernal, dia dezessete de junho, sentados em um sofá na sala de visitas da casa de Julieta, ele olhou no fundo de seus olhos, como fazia todo dia, mas dessa vez, soltou tudo o que o seu coração cantarolava silenciosamente.
            - Eu te amo.
            Um sorriso naturalmente surgiu na face da moça, já delatando o que ela sentia por ele. Mas ainda de mãos dadas com a insegurança, ele expressou uma condição para que pudessem começar um relacionamento.
            - Eu quero expressar uma condição.
            - Que condição?
            Ele pôs a mão no bolso de seu casaco e cuidadosamente retirou aquela belezinha. Uma flor intensamente vermelha, a mais vermelha e bonita que ela já tinha visto em sua vida!
            - Essa é uma flor encantada, colhida especialmente debaixo do ipê jasmim do precipício do leste.
            - E o que ela faz? Realiza desejos? – riu Julieta.
            - Quero que a coloque num copo com água. Uma flor comum morre um ou dois dias depois. Mas essa flor encantada demorará bastante tempo para morrer. Ontem, às três da manhã, eu escolhi especificamente ela e a colhi, e a cheirei e perguntei baixinho se você é a pessoa certa para mim. Coloque-a num copo com água, e se depois de um ano ela continuar viva, a resposta é sim e poderemos viver felizes eternamente.
            - Terei que esperar um ano para saber?
            - Por você, eu esperaria uma década. A rosa me dirá se o seu sentimento é recíproco. Todo dia eu virei visitá-la para verificar se a flor permanecerá viva.
            Julieta achou aquela ideia absurda, mas seu coração concordou com a proposta. Então ela aceitou.
            Naquela mesma madrugada, enquanto revirava na cama à noite com o seu vizinho tocando clarinete, Julieta se levantou para tomar um pouco de água. Enquanto passava pela sala de estar, deu uma rápida olhada para o copo e… seu coração disparou! A flor já havia morrido!
            Correu para o quarto chorou por duas horas, desamparada, a pobre Julieta. Não queria que Romeu lhe deixasse, ele não podia descobrir.
            Saiu logo em seguida de casa, cuidadosamente, e seguiu em disparada até o precipício do leste. Lá estava o ipê jasmim e aquele mundaréu de flores extremamente vermelhas. E para sua sorte, eram todas idênticas. Será que todas elas eram encantadas? E se seu plano não desse certo? Arrancou qualquer uma daquelas rosas e a levou consigo. Ao chegar em sua casa, substituiu a rosa morta pela flor que acabara de trazer e foi dormir esperando que tudo desse certo.
            No outro dia, veja só, Romeu foi visitá-la e examinou minuciosamente a flor. O coração de Julieta bateu um pouco mais rápido. Ficou tensa, no canto da sala, enquanto ele encarava aquela flor vivíssima. Então, ele olhou para Julieta e sorriu.
            - Por enquanto estamos indo bem. – comentou ele, e lhe de um beijo.
            Naquela madrugada, a flor morreu. E mais uma vez Julieta chorou. Se as flores encantadas não viviam, é porque não era para eles se casarem. Mas não podia ser! Não ia deixar aquilo acontecer! Saiu madrugada adentro, colheu outra flor no precipício do leste e a colocou no lugar da rosa morta. No dia seguinte, Romeu examinou a flor, sorriu e disse:
            - Está dando certo.
            E lhe de um beijo.
            E toda noite, para martírio da pobre amada, a flor morria. E ela a substituía por uma nova flor, que a cada madrugada ela colhia no precipício do leste. Sentia-se feliz por seu plano estar dando certo, mas ao mesmo tempo, sua alma se enchia de culpa e pesar por estar enganando-o.
            Passaram-se dias e semanas e meses, até que o dia dezessete de junho chegou novamente. Naquela manhã, completando um ano após a primeira rosa ser dada a Julieta, Romeu adentrou a casa e viu a rosa ainda viva, com uma expressão de satisfação e contentamento no rosto.
            - Isso é incrível! A flor está viva! Isso significa que…
            Ela sorriu em resposta.
            - Julieta, - ele se ajoelhou aos seus pés e tirou uma aliança de prata de dentro do bolso. – você aceitar se casar comigo?
            Trêmula, tentou responder, mas lágrimas surgiram em seus olhos, e vê-lo ajoelhado aos seus pés, com aquela aliança aparentemente caríssima, acreditando que ela realmente era a certa para ele, era muito triste. Uma parte de sua alma o queria, mas a outra metade não queria enganá-lo.
            - Romeu, eu tenho que confessar algo…
            O sorriso dele foi sumindo aos poucos.
            - Diga, Julieta. O que foi?
            - Essa flor… não é aquela rosa encantada que você me deu há um ano atrás. – e as lágrimas caíram. – Mas eu realmente não entendo…
            - Como assim?
            - A flor que você me deu morreu na mesma noite. E eu a substituí por outra flor idêntica. Mas todas as flores que eu colhia duravam apenas um dia, o que é realmente muito estranho, porque eu te amo e…
            - Não se martirize, Julieta. Isso prova que eu devo me casar com você, agora com mais certeza do que nunca.
            - Por que diz isso?
            - Porque a flor que eu te dei não era encantada coisa nenhuma. Todas as rosas do precipício do leste são rosas comuns, que vivem como rosas comuns. E se durante um ano, você foi todas as madrugadas, pacientemente, colher flores para substituir as que morriam, é porque você não quer mesmo me perder. E me ama, assim como te amo.
            Então eles se casaram, compraram uma casa à beira-mar e tiveram uma filha. Viveram felizes para sempre.
            Mas esse felizes para sempre durou dois anos, quando o casal se divorciou e Julieta tirou tudo de Romeu, incluindo a filha e a casa. Romeu recolheu sua solidão em um apartamento nos subúrbios da cidade, onde encontrou um novo amor.
            Seu nome era Mariana.
            E na semana seguinte, Vanessa.
            E na semana seguinte, Carol.
            E na semana seguinte, Patrícia.
            E então seu dinheiro acabou.
Victor Tanaka